Fonte: UOL | Notícias

Uma forma antiga e rudimentar de preparar as refeições volta a ser praticada na Venezuela: o fogão a lenha. Esse retorno ao passado não ocorre por modismo, mas, sim, por necessidade. De acordo com a Agência Internacional de Energia (AIE), a Venezuela é o oitavo país do mundo em reservas de gás liquefeito de petróleo (GLP). No entanto, os problemas na distribuição de gás doméstico deixaram a população sem alternativa, a não ser recorrer à queima da madeira.

Essa prática é observada no interior do país há vários meses e, agora, tornou-se uma realidade também na capital, Caracas. Em busca de madeira para cozinhar, sequer os parques nacionais são poupados.

De acordo com Antero Alvarado, professor do Instituto de Estudos Superiores de Administração (IESA), cerca de 84% do consumo de gás doméstico em toda a Venezuela é feito por meio de botijões, e apenas 7% da população recebe gás (metano) diretamente em suas residências.

A estatal Petróleos da Venezuela produz mais gás doméstico do que a população pode consumir. Porém, há falhas tanto nos sistemas de extração, engarrafamento e de distribuição do fluido. A escassez de bujões transformou o quintal das casas ou o pátio dos edifícios em cozinhas abertas. É nesses espaços que as pessoas preparam à moda antiga os alimentos e tentam evitar os danos à saúde causados pela fumaça.

Lenta deterioração

Em 2007, durante a era das expropriações do governo de Hugo Chávez (1999-2013), o Estado nacionalizou duas das mais importantes empresas de GLP do país. Na sequência foi criada a PDVSA Gás Comunal, empresa que tem total controle sobre o armazenamento e a distribuição de GLP. Alguns pequenos fornecedores, localizados em três estados venezuelanos, distribuem o gás doméstico.

A Venezuela fabricava diariamente 160 mil barris de gás metano na época em que a PDVSA produzia três milhões de barris de petróleo por dia. O gás era retirado junto com o petróleo. Mas o lento mergulho na crise econômica, após a morte de Chávez e a gestão caótica de Maduro, além das sanções internacionais, fazem com que o país tenha, atualmente, uma única fábrica produtora de GLP e ainda por cima sucateada. Apesar da demanda interna do produto, não há como armazenar e despachar o gás extraído.

A Venezuela chegou a exportar gás propano, a partir do qual o GLP é produzido. Mas, entre 2009 e 2010, o combustível começou a ser importado. Posteriormente, com a imposição de sanções do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, essas operações se tornaram complexas.

No momento, a escassez de GLP alcança 60% da demanda, o que leva a Venezuela a uma situação bastante crítica. O país beira o risco de ficar sem gás para consumo doméstico. Sem contar que cerca de 50% da frota que transporta o gás, seja ele em estado bruto ou já engarrafado, está parada por falta de manutenção ou de peças básicas para os veículos. Atualmente, apenas um barco faz o transporte marítimo do gás.

Botijões contrabandeados

Com a quarentena provocada pela epidemia de coronavírus, a venda dos bujões de gás começou a ser articulada pelos Conselhos Comunais, espécie de organização comunitária instaurada desde a gestão de Chávez. Essa estrutura implica em mais burocracia para o comprador. Algumas comunidades denunciam a existência de máfias que controlam o acesso ao produto.

Além disso, em todo o país há um déficit de 12 milhões de bujões de gás. Apenas três milhões de unidades estão em boas condições, tendo em vista que a vida útil de um bujão dura cerca de dez anos.

Na hora da compra do refil, o consumidor é tomado por uma certa apreensão. Caso o seu cilindro desapareça, conseguir outro botijão é bastante complicado. O preço tabelado por unidade varia entre US$ 0,14 e US$ 0,46, de acordo com a quantidade do produto. No entanto, esse valor é apenas teórico. Na prática, é preciso pagar mais pelos escassos bujões. No mercado ilegal, o valor de um botijão varia entre US$ 8 e US$ 15. Se comparado com os 800 mil bolívares do salário mínimo venezuelano, equivalente a cerca de US $1,40, o preço é exorbitante.

Um dos motivos da escassez de botijões, de acordo com a ONG Transparência Internacional, é o contrabando dessas peças para a Colômbia. No país vizinho, um bujão vale muito mais. Anos atrás, o Estado importou cilindros de Portugal e da Ucrânia, mas não chegou a suprir a demanda interna.

Lenha ou fogão elétrico

A lenha que os venezuelanos têm usado para cozinhar é vendida em supermercados, em lojinhas e até mesmo em camelôs, que buscam, assim, ganhar algum dinheiro para comprar comida.

No interior do país, caminhões da estatal Petróleos da Venezuela Gás Comunal, que deveriam fazer a venda dos botijões de gás, são vistos transportando lenha. Quem pode, compra fogões portáteis movidos a energia elétrica.

Isabel Contreras recorreu a um fogão elétrico portátil para cozinhar. Ela prefere fazer um sopão para a família de cinco pessoas. Mas é preciso se adaptar também às falhas ou ao racionamento de energia elétrica em Maracay, capital do estado de Aragua e segunda maior cidade do país.

“Preferimos cozinhar tudo logo cedo. A comida já fica pronta caso falte energia”, conta.

Os vizinhos desta engenheira, sem dinheiro para comprar um fogão elétrico, recorrem a um terreno baldio nas imediações do bairro para conseguir lenha ou mesmo arbustos secos para acender o fogão adaptado.

Outros ignoram as determinações legais e buscam madeira em lugares protegidos. Essa situação vem acontecendo no Parque Nacional Henri Pittier, criado em 1937 e com árvores centenárias, de cerca de 800 anos.

Para alguns, a prática de cozinhar à lenha significa uma volta à década de 1930, uma situação inesperada para este país que já foi considerado o mais próspero da América do Sul.

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