Fonte: Consumidor Moderno

Há décadas, a defesa do consumidor empregou um modelo que, entre outras práticas, protege exclusivamente o consumidor hipossuficiente. Mas isso mudou há dois anos a partir da entrada do governo Bolsonaro. Agora, fala-se na preservação de um ecossistema chamado relações de consumo, o que inclui às empresas, e colocou em perspectivas temas como a defesa da concorrência como mecanismo de apoio ao consumidor. Há, no entanto, um preço para isso: a menor interferência do público no mundo dos negócios.

Certo ou errado, esse é o modelo de defesa do consumidor adotado pelo governo federal e que tem na figura de Luciano Benetti Timm, advogado e primeiro secretário nacional do consumidor da gestão do governo Bolsonaro, um dos principais representantes da atualidade.

Consumidor Moderno, Timm concedeu uma entrevista importante sobre o tema, inclusive abordando temas como a interferência de políticos em sua gestão da Senacon. Mais do que isso, ele também comentou sobre a polarização dentro do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e classificou alguns críticos do atual modelo da Senacon como “conservadores”. Será que estamos diante do surgimento de duas defesas dos consumidores: uma de esquerda e, outra, de direita? Acompanhe a entrevista.

Consumidor Moderno – Recentemente, o senhor fez uma postagem em uma rede social, dizendo: “…e, conhecendo o Ministro André Mendonça, com quem trabalhei por alguns meses, tenho certeza de que será esse o caso (ele se referia a liberdade de gestão); embora quem já passou pelo MJ sabe que existem as pressões políticas dos mesmos de sempre para que tudo fique como está”. Foi um desabado sobre algum tipo de pressão política?

Luciano Benetti Timm – Não foi um desabafo, mas uma constatação da minha experiência na gestão pública. Eu tenho certeza e acredito que seja normal, pois é da natureza do ser humano ter o espaço da política. Aristóteles dizia que onde há ser humano, existe a política. Os autores que eu sigo e que ensino na faculdade descrevem como algo natural, inclusive que você tenha fricções políticas. Então, na ocasião (do post), foi uma constatação de que isso, de fato, acontece. É o que está nos livros de (Richard) Posner e (Stephen) Stigler.

Ela (pressão) não é indevida, mas há, sim, uma grande pressão política de inúmeros atores. A mídia faz pressão. Há também pressões políticas das ONGs, de entidades empresariais e governamentais de estado, além de agência reguladora. No entanto, a literatura que eu sigo recomenda, assim como os organismos internacionais, que devemos blindar um órgão técnico que trata de regulação econômica. Para mim, defesa do consumidor é, sobretudo, intervenção do mercado e relações de consumo.

Quando você cria uma agência reguladora, os ocupantes do cargo deveriam ter um mandato. No CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) é assim. Quando eu cheguei na SENACON, e isso está no meu relatório de gestão, havia mais de 30% dos cargos vagos. À época, eu relato que a situação estava assim por causa de um embate político, o que fez com que muitos servidores de carreira deixassem o cargo.

Isso não é bom para a defesa do consumidor e eu não encontrei essa situação no CADE. Eu encontrei um CADE muito mais bem estruturado do que a SENACON e, parte disso, eu atribuo ao fato das pessoas que ocupam a agência terem um mandato. Em alguns países, inclusive, é assim. No Peru, o INDECOPI é uma entidade que faz regulação econômica, seja ela de concorrência, seja ela de consumidor. Nos EUA, o FTC também cuida de consumidor e concorrência. O mesmo acontece no Canadá, Austrália e vários outros países que optaram por esse modelo.

Veja: eu não estou fazendo uma crítica. Quando você tem esse espaço da política, ele é ocupado por seres humanos. É isso o que eu quis me referir.

Mas, claro, como a defesa do consumidor é antiga no Brasil e tem tradição, existem grupos mais antigos que resistem a qualquer mudança, pois ela traz insegurança e os mais antigos não concordam. Eu digo até que eles são conservadores e não progressistas. Alguns se dizem progressistas, mas são conservadores porque são avessos às mudanças. (Steven Arthur) Pinker (psicólogo e linguista canadense naturalizado norte-americano) diz isso no livro do Iluminismo (o nome da obra é O Novo Iluminismo). Ele fala justamente desses supostos progressistas que, no fundo, não gostam de progresso.

A nossa gestão foi bastante progressista no alinhamento com a ciência, com as melhores práticas internacionais e no uso de evidências.

Então, a fala (post) foi nesse sentido. Qualquer tentativa de mudança havia sempre as pessoas que tentam resistir como se fossem representantes, como se tivessem um discurso único de defesa do consumidor. No fundo, você tem várias formas de defender o consumidor. Você pode apostar na concorrência ou na regulação. Dessa forma, você está defendendo os consumidores a despeito de uma discussão retórica política.

CM – Mas você chegou a ser pressionado por algum político de fato. Em algum momento você sentiu alguma força externa querendo atuar na Senacon?

L.B.T – Sim. Só que na época o ministro (da Justiça e Segurança Pública) Sérgio Moro era muito forte. Não posso falar de outros períodos. Além disso, eu fiquei três meses na gestão do (atual) ministro André Mendonça, que também é forte.

Mas, veja como eu entendo as coisas a partir dos autores que comentei: a política é feita também por entidades empresariais, que defendem os seus interesses e fazem razoável pressão. A OAB também defende os seus interesses, o próprio Ministério Público e por aí vai. Você tem vários grupos de interesse que atuam publicamente por meio da política. É natural e normal, segundo esses autores que eu sigo. No entanto, é por isso eu acredito em mandatos para blindar esses órgãos. A política funciona no curto prazo porque o poder e o não poder (binômios do sistema político) se definem nas urnas periodicamente. As pessoas votam a partir, muitas vezes, de sentimentos e emoções, pois o “mercado político” tem inúmeras falhas (mais até que o mercado econômico)Já a regulação, a técnica, é uma coisa de médio prazo e que requer o lado cerebral pragmático e racional.

Veja o que aconteceu na pandemia. Em março de 2020, os preços do álcool em gel dispararam e, então, imediatamente, alguns grupos defenderam, pela lógica da política, do imediatismo, tabelar o preço. Isso ocorre porque quando há uma pressão política no Procon, ele ocorre por meio do chefe do Procon, que é o governador ou o prefeito. É do jogo. Eu aposto nos mandatos para evitar essa lógica imediatista da política. Essas entidades fazem isso, assim como os políticos também. Nem sempre a pressão desses grupos se alinha com os interesses da sociedade ou dos consumidores, ainda que possa haver um discurso retórico nesse sentido. Até por isso, eu defendo academicamente que o lobby seja regulado para que, inclusive, isso ocorra por ONGs e entidades empresariais, entre outros.

No fundo, o que a passagem pela pandemia mostrou é que não tabelar preço foi bom para os consumidores a médio prazo, como estamos vendo agora, a despeito de pressões políticas de curto prazo. Há produtos na estante. Foi um momento difícil, mas outros países que tabelaram preços, caso da Argentina, há notícias de falta de produtos na prateleira.

CM – Órgãos reguladores, como o senhor bem disse, possuem uma espécie de aura mais técnica. Ou deveria ser assim. O que vemos, na prática, são acusações de atuações ideológicas entre os diferentes atores do Sistema Nacional de Defesa do consumidor. Afinal, temos lados distintos na defesa do consumidor? 

L.B.T – Dentro dessa vertente acadêmica que eu trabalho, os seres humanos ocupam os espaços a partir dos seus interesses. É como a água: quando ela não enfrenta resistência, ela vai indo. Então, não é só empresa que busca o seu interesse. O político busca o seu interesse e precisa ser eleito. Nesse sentido, ele é um agente irracional: ele atua em pautas do que dão voto a partir do “mercado político”.

As ONGS nem sempre atuam dentro do interesse coletivo. Há momentos em que elas defendem os interesses das pessoas que fundaram a própria ONG, sendo que muitas vezes não há respaldo na sociedade sobre a atuação delas. Isso inclusive apareceu em algumas consultas públicas que fizemos na Senacon, como da publicidade infantil.

Voltando aos parlamentares, e isso é avaliação de uma escola de Chicago, atuam a partir da chamada Escolha Pública ou Public Choice, que diz que o político também atua com uma base irracional de custo-benefício. Ele precisa ganhar a eleição e precisa de pautas que deem voto. No Brasil, defender o consumidor dá voto porque nós temos um mercado concentrado, uma estabilidade monetária recente e uma concorrência muito insuficiente, que nos traz produtos nem sempre da melhor qualidade. No entanto, eu entendo que estamos avançando nesse caminho com os naturais revezes da pandemia e alguns passos atrás em 2014-2015.

Na defesa do consumidor criou-se um sentimento de que a sociedade é explorada. Mas será que as pessoas realmente se sentem assim? Você ter alguém que defenda alegadamente o seu interesse é alguém que você vota.

É como eu disse: pode acontecer que uma atuação parlamentar esteja alinhada com interesses da população, mas também pode não acontecer e, quando você não tem um mandato para os reguladores, você cria espaços para essa atuação (da política).

Então, no fundo, é um espaço que se optou constitucionalmente por um espalhamento na defesa do consumidor, assim como na saúde. Hoje são 900 Procons, então você acaba dando muito espaço para a insegurança jurídica e para diferentes entendimentos e para protagonismo estritamente político de curto prazo. Eu não conheço nenhum país que tenha 900 órgãos públicos de regulação e defesa do consumidor. Em algum momento esse sistema terá de ser racionalizado em benefício da população.

CM – Na sua avaliação, hoje temos uma bancada da defesa do consumidor no Congresso ou são atuações parlamentares pontuais?

L.B.T – Já existe, inclusive está formalmente constituída. Eu já participei de várias sessões (das comissões) defesa do consumidor com deputados que possuem um histórico nessa área. Eu não acho necessariamente ruim, mas veja: eles são legisladores, mas eu acho que a regulação tem que estar blindada da política por conta de previsibilidade, segurança jurídica e eu não estou inventando a roda. É o que dizem a OCDE, a UNCTAD e a ciência. Por isso a Lei de Liberdade Econômica é tão importante, pois proíbe o abuso regulatório.

Agora, felizmente, eu tenho visto nas discussões do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (órgão da Senacon em que Timm é integrante) que há consenso de que defesa do consumidor é regulação e que precisa fazer análise de impacto regulatório. É uma grande evolução. Outra grande evolução foi o consenso no Comitê Especial de preços abusivos, que vivemos em uma economia de mercado e não devemos tabelar preços.

CM – Quero retomar a questão dos lados distintos na defesa do consumidor. Eu questionei o senhor sobre as acusações dos lados da defesa do consumidor, ou seja, se temos algo mais à esquerda ou direita. Bom, a última eleição mostrou que a maioria preferiu um governo liberal, portanto mais à direita. Mas, especificamente na defesa do consumidor, nós temos interpretações mais à direita ou à esquerda do Código de Defesa do Consumidor?

L.B.T – Existem diferentes escolas jurídicas, especialmente a do Brasil, que é muito dogmática. E o que isso significa? É aquela coisa dos comentários à Constituição, do jurista como um revelador de sentido de textos quase sagrados impenetráveis pelo cidadão comum, que usa uma linguagem rebuscada, por vezes é uma pessoa inatingível e, por fim, haveria ali isenção. Tem outra escola de pensamento com a qual eu me filio: o Pragmatismo jurídico, que, no fundo, significa dizer que a aplicação da lei em casos difíceis presume uma escolha econômica, política e moral, sem que exista uma verdade dogmática pré-constituída.

Evidentemente que eu não gosto da expressão esquerda ou direita, que remonta a coisas fluidas. Prefiro dizer liberal e iliberal. O liberal vai ter uma visão da interpretação da aplicação da lei diferente do iliberal. Tanto é verdade que os ministros da Suprema Corte americana e brasileira são apontados e aprovados a partir de uma visão política, econômica e moral. Nos EUA, como eles são mais pragmáticos, esse processo é mais transparente. Se o presidente é republicano, ele indica alguém com uma visão mais liberal no sentido econômico. Se um democrata vence, ele coloca alguém mais iliberal, mais intervencionista.

E como você protege a Suprema Corte da política? Os mandatos dos juízes são vitalícios. Nesse sentido, o regulador também tem mandato. O CADE, por exemplo, é liberal. Em direito do consumidor, por ter muitas cláusulas gerais como “boa fé” e “abusividade”, é uma área de tradicional viés ideológico, assim como é o direito do trabalho e também o direito penal. Eu já dei aula em turmas multidisciplinares, e tínhamos lá um pessoal de direito do trabalho, que é mais avesso a uma economia de mercado. Isso na média, claro – lembrando que a estatística é outra dificuldade para maioria dos bacharéis em Direito, mas fundamental no campo das ciências sociais.

No direito do consumidor criou-se um mito do conflito empresa-consumidor, como se fosse um jogo de soma zero: para a empresa melhorar, o consumidor tem que prejudicar e vice-versa. Aqui temos um grupo muito antigo que reproduz uma linha de pensamento conservador, que olha muito para trás. Estamos falando de um código feito com base em diretivas europeias de 1980, pré-queda do muro de Berlim, que aposta muito na judicialização, na intervenção do estado, na economia e na proteção do vulnerável. Isso é ultrapassado.

Veja que pelas diretrizes da Unctad, da ONU, nem todo consumidor se presume vulnerável. Seriam apenas as crianças e o idoso. A opção do CDC foi diferente. Temos que atualizar um pouco a visão do que aconteceu nos últimos 30 anos. Mas essa é uma visão, digamos, liberal. Não estou dizendo se ela está certa ou errada: foi a que o eleitor votou. Algumas entidades não deveriam ficar ofendidas quando a Senacon, que é da União, tenta coordenar as políticas públicas. E o que estamos propondo não veio da cabeça de ninguém. Nós apenas seguimos, enquanto estivemos por lá, as recomendações internacionais. A Unctad e a OCDE recomendam o uso de plataformas digitais. A OCDE e a UNCTAD recomendam o uso de mediação e arbitragem online.

Então, por conta disso, digo que estamos muito conservadores ainda. Assim como a maioria dos professores de direito trabalhista, os de direito do consumidor também são iliberais, são intervencionistas.

Eu penso que é natural na gestão pública existir pêndulos. Não acho ruim termos mudanças. O Brasil precisava de uma mudança de rumo por causa dos muitos equívocos ocorridos no governo Dilma. Não devemos esquecer que o Brasil perdeu 7% do seu PIB, sendo que nem na pandemia nós perdemos isso. Na ocasião, houve muito equívoco regulatório. Por exemplo: tanto é verdade que o eleitor queria a desregulação promovida pela lei de liberdade econômica que, mesmo (sendo uma medida) atribuída ao executivo, ela passou no Congresso com quórum para mudança constitucional (é necessário três quintos para promover uma alteração na Constituição Federal ou, no mínimo, o voto de 308 deputados e 49 senadores).

Isso não é precarizar o consumidor. Isso é mera retórica sem dado algum ou palavras ao vento. Eu defendo uma política pública baseada em evidências. Na minha gestão, as pautas prioritárias do Ministério da Justiça – que são fixadas a cada quatro anos – vieram de governos anteriores, caso da necessidade de dinamizar a plataforma do Consumidor.gov.br e dar segurança e integridade do consumidor. Nós melhoramos esses índices e essa é a realidade. Do ponto de vista de resultado, nós superamos aquilo que tínhamos projetado e superamos as gestões anteriores nesses resultados. Quer dizer, fora a espuma da discussão político-ideológico, em termos de resultado, foi bastante efetivo. A Constituição Federal tem um texto de ordem econômica suficientemente aberto, democrático e pode contemplar tanto políticas públicas mais liberais quanto as mais intervencionistas. Quem define qual caminho seguir é o eleitor.

Então, a decisão de ingressar na OCDE não é desse governo, mas uma iniciativa de estado. Na última reunião do Mercosul, por exemplo, a Argentina já não via prioridade na OCDE, assim como não era do PT. O PT nunca quis ingressar na OCDE porque dizia que era neoliberal. Enquanto isso, o Chile, Colômbia, Peru ingressaram e nós fomos ficamos para trás. De novo, a ideologia atrapalhando o trabalho técnico.

CM – Por que a aposta na pauta comentada pelo senhor?

L.B.T – Nós apostamos em plataformas on-line, segundo sugestões dos organismos internacionais. Nós apostamos em mediação e isso é política pública. Tenho a convicção de que se fosse numa eleição, os consumidores gostariam de ter o Consumidor.gov.br e não ir a algum lugar para cancelar uma linha telefônica. Com o Consumidor.gov.br você não precisa entrar com uma ação no Judiciário, pois isso demanda tempo e recurso. O próprio consumidor subsidia a Justiça toda vez que vai ao judiciário.

Aliás, a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) tem um estudo sobre a relação entre o Juizado Especial em São Paulo e as regiões da cidade. Só as áreas mais ricas de São Paulo usam o juizado especial. Os pobres não usam o JECS porque não possuem um patrimônio para litigar. Não existe Justiça de graça. As pessoas de lá estão recebendo: servidor, juiz… e quem paga a conta? O consumidor no tributo. Já estamos com uma carga tributária de mais de 40% do PIB. Isso é nível europeu de tributação.

Uma pauta de desregulação não tem nada a ver com terminar com o direito do consumidor. É uma política pública diferente de um excesso de intervenção no mercado. Agora, isso é bom ou ruim para o consumidor? Eu defendo que é bom, mas a política pública vai sendo renovada. Talvez daqui a 4 anos seja diferente. As pessoas precisam aprender a dialogar e a conviver com a diferença. Eu tenho bastante tranquilidade de conviver com a diferença de pensamento. No entanto, aqueles que mais pregam o diálogo, são os que mais dificuldade tem em conviver com a diferença de pensamento.

CM – Você acha que as atuais políticas de defesa do consumidor se sustentam na próxima gestão?

L.B.T – O ex-ministro Nelson Jobim dizia que a política muda a cada seis meses. É muito difícil prever o que vai acontecer. Depende muito de como é que a economia vai andar e se nós ainda estaremos vacinando as pessoas. O que está claro é que existe uma maneira de trabalhar o direito do consumidor, mais alinhado às práticas internacionais. A Senacon, quando eu assumi, era muito pouco internacionalizada porque as pessoas daqui acreditam que a nossa defesa do consumidor é muito boa. Eu penso que sempre há espaço para melhorar. Defendo uma linha de gestão mais alinhada à OCDE, mas veja: se daqui a pouco ganha um partido de esquerda ou intervencionista, ele pode, assim como aconteceu na Argentina, achar que a OCDE não é prioridade. Você pode apostar em uma linha de defesa do consumidor mais ligada a direitos humanos, mais intervencionista e que faz tabelamento de preço. Agora, achar que as empresas são más, no fundo, é apostar muito no conflito. Penso que dá para fazer políticas públicas apostando no diálogo.

Na minha gestão você teve várias condenações em processos sancionadores. Não é porque você trabalha com uma visão de política pública, mais alinhada a OCDE, que você não irá sancionar. É claro que vai, mas apenas quando for o caso. Mas essa visão garante maior segurança jurídica e previsibilidade.

Nesse sentido, acho que o Conselho (da Senacon) está evoluindo bem em alguns temas. Temos pautas interessantes como mediação e a arbitragem, a regulação e a defesa do consumidor e o desafio da regulação de dados. Particularmente, penso que não devemos excluir a ideia de que uma parte dos processos sancionadores da Senacon sejam incorporados pelo CADE. Defendo ainda que os dirigentes de Procons estaduais tenham mandatos, que pensem em mecanismos mais sólidos. Hoje, até os juízes são obrigados a seguir precedentes por lei. Então, a segurança jurídica é fundamental e não é para defender as empresas, mas defender os consumidores.

As pessoas falam muito: “você defende o mercado”. Mas o que é mercado? Mercado é um espaço público de interação entre consumidores e fornecedores. Então, defender o livre-mercado não é defender o fornecedor. É o contrário. O livre-mercado aposta na concorrência. Por vezes, dentro desse modelo, você tem que desregular.

O que a ANVISA está fazendo agora? Para facilitar o acesso à vacina, com alguma prudência, eles estão desregulando. Durante a pandemia, o que causou a diminuição dos preços de álcool em gel? Primeiro que os preços estavam altos e atraíram novos concorrentes. No fim, a ANVISA permitiu a fabricação de álcool líquido 70%, que era proibido até então. Então, a agência desregulou. O que fez com que os preços de máscaras cirúrgicas caíssem? Foi a concorrência de máscaras artesanais e a ANVISA, que disciplinou a oferta de máscaras artesanais. Então, defender livre-mercado é isso. Não estou dizendo que não tem que ter regulação. Tem, mas precisa ter a análise de impacto regulatório, tem que ter dados, mensurar, ver os resultados e assim por diante.

O ministro (do STF Luiz) Fux, por exemplo, que está mais alinhado a análise econômica do direito, tem um voto muito interessante no caso do Uber alinhado ao princípio da livre concorrência. Será que o Uber e essas plataformas não foram bons para os consumidores? Ou seria bom para os consumidores ficarem reféns de taxis, no sentido de não ter concorrência? Para os consumidores, a entrada no mercado do UBER, 99 e outras plataformas foi bom. Onde é que estavam as ONGs de defesa do consumidor nesse momento?

Outro exemplo é a entrada do AIRBNB concorrendo com os hoteis: foi bom ou ruim para os consumidores? Claro que foi bom. O que o consumidor quer no fim do dia? Ele quer produtos melhores a preços menores. Hoje, temos um mercado pouco concorrido, acaba que muita coisa aqui é cara, com alta tributação e de má qualidade. E o que você vai fazer? Só defender o consumidor é enxugar gelo. É preciso estar junto com a defesa da concorrência, portanto de livre-mercado. Essa foi a lição do voto do (ministro do STF) Luiz Fux. Então, um outro ministro, com outra linha de pensamento, poderia dar um voto diferente? Claro, e deram. O ministro (do STF Ricardo) Lewandowski concedeu uma liminar contra uma privatização. Não estou criticando mas exercendo minha liberdade de expressão.

CM – Fazendo uma reflexão sobre o seu mandato, você acha que errou em algum momento?

L.B.T – Seria arrogante se eu dissesse que tudo o que fiz foi correto. Mas eu sempre dou exemplo do sujeito que está no meio da faculdade e diz que, se voltasse para o ensino médio, teria feito mais disso ou daquilo: veja, você não volta no tempo! Não teria como pensar em fazer diferente porque é um processo. As decisões foram tomadas dentro de um contexto. Foram decisões difíceis, mas eu certamente não me arrependo de ter montado uma equipe técnica e de ter apostado no diálogo.

É claro: sempre há grupos que querem o diálogo, mas o debate de alguns deles é assim: se perdem, dizem que ele não ocorreu. Pinker também diz isso também no livro do Iluminismo. No fundo, as pessoas que mais pregam a necessidade de diálogo são os que menos gostam. Eu não tenho essa dificuldade mesmo porque, não sei se você sabe, mas o meu pai é exilado político. Eu sei o que é democracia. Algumas pessoas vêm me falar de democracia e não tem a menor ideia do que isso seja. Eu sei na pele. Convivi com pessoas de esquerda bastante radicais.

O que eu noto é que alguns grupos arraigados e dogmáticos têm dificuldade de lidar com a diferença. Na medida do possível, houve diálogo, sim. Mas é importante que entendam que cabe à Senacon a coordenação, a política pública. No tema da saúde, volta e meia, há críticas em relação ao Ministério da Saúde: afinal, ele coordenou ou não coordenou? Não entrarei nesse mérito, mas na Senacon, nós tentamos de todo jeito coordenar, mas nem todo mundo gosta e aceita a coordenação.

Aliás, uma das coisas que eu notei, dentro da minha experiência em Brasília, é que os clássicos da nossa literatura, da sociologia e da ciência política vivem metaforicamente lá. Tem três livros que todo brasileiro deveria ler: um deles é “Os donos do Poder”, do Raymundo Faoro. Ele lembra que bem como corporações se alinham aos detentores do poder. O outro autor é o Sérgio Buarque de Holanda, que fala desse “jeitinho brasileiro” e da dificuldade do brasileiro de coordenação e de cumprir regras (a análise está presente na obra Raízes do Brasil). Por fim, o outro livro é do Vitor Nunes Leal, dizia (no livro Coronelismo, Enxada e Voto, lançado em 1948) já naquele tempo sobre a força dos governadores e da força da política local. Então, o Brasil é um país muito complexo e de difícil gestão da Federação.

CM – Qual seria o problema com a nossa Constituição?

L.B.T – A nossa Federação foi mal desenhada, diferentemente da federação americana. Lá, ela foi concebida a permitir a concorrência entre estados. Então, por exemplo, você ter um direito societário no Delaware, um Estado no meio do nada, mas que abriga 90% das empresas dos EUA. Sabe o motivo? Porque é o melhor direito societário.

No Brasil, o direito societário é federal, portanto, não há como concorrer um Estado contra o outro. Penso que, com exceção da tributação – afinal a “guerra fiscal só favorece às empresas –, sou favorável que os Estados concorram. O brasileiro tem dificuldade de trabalhar cooperativamente. Há quem associe o desenvolvimento (econômico, estrutural e outros) à cooperação. Então, como o Brasil tem um nível médio de desenvolvimento, cooperamos menos que um alemão.

É sempre um desafio você tentar coordenar um sistema nacional porque existem grupos que querem o protagonismo inclusive político, como já expliquei. No entanto, a lei afirma que a coordenação das políticas públicas cabe à União Federal.

CM – Você pensa na carreira política?

L.B.T – Não penso. Eu era um advogado com uma boa prática e voltei. Estou feliz aqui. Antes, eu atuava pouco na área de consumidor, muito embora o meu mestrado tenha sido nessa área. Eu atuava mais em matéria econômica e comercial, sobretudo em arbitragem. Não tenho pretensões de concorrência eleitoral. O meu negócio é voltar para a universidade e ser o que sempre fui: advogado.

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