Fonte: Poder360

No Brasil é muito comum apontar culpados quando de pressões de preços administrados como o caso de combustíveis e da energia elétrica. Essa narrativa do vilão torna-se mais evidente em momentos de crise socioeconômica, como a que vivemos atualmente em razão da pandemia de covid-19.

Com o fim do auxílio emergencial e novo ciclo de commodities, a velocidade de normalização de preços em relação a pré-pandemia se mostrou muito maior do que a velocidade de imunização da população global, desnudando de maneira mais triste as diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Quando se soma pressão de preços (alimentos, fretes, conta de luz, gasolina, diesel, etanol, açúcar, GLP, gás natural, GNL, etc) em momento de crise social é justo que a pressão aumente para soluções que possam aliviar a situação de todos, em particular dos menos assistidos.

Recentemente essa narrativa voltou, também, em relação às empresas de distribuição de gás natural, quando reajustarão as tarifas dos consumidores finais entre 18% e 35%, sob a alegação tal segmento da cadeia poderia estar se apropriando de margens maiores em prejuízo ao consumidor.

É importante retomar alguns conceitos da atividade regulada de distribuição, seja ela no setor elétrico seja no setor de gás canalizado para contextualizar essa narrativa. Em primeiro lugar, atualmente os custos com compra de energia representam em média 35% das contas de luz, e os custos de compra de gás natural representam 46% das contas de gás canalizado.

Em ambos os casos, os custos possuem natureza não gerenciada, ou seja, são repassados integralmente às tarifas finais. Essa natureza de custo não gerenciável está inclusa nos contratos de concessão de ambos os setores desde o processo de abertura de mercado que se iniciou entre 1995 e 1997. Porém chamamos a atenção, que indiretamente preços mais altos de energia elétrica e gás natural geram efeitos negativos para as distribuidoras, pois quanto maior as tarifas, maior o risco de inadimplência que, em momento de crise social como vivemos hoje se torna sempre mais significativo.

Portanto, as distribuidoras de energia elétrica e gás natural possuem interesse sim em encontrar suprimento no menor preço possível para que, quanto menor a oneração da tarifa final do consumidor, maior a propensão ao consumo e menor a pressão de inadimplência.

Em segundo lugar, ainda na narrativa de procurar vilões, é importante que se avalie se realmente o peso da atividade da distribuição de energia elétrica e de gás canalizado na conta de luz ou de gás vem crescendo de maneira desproporcional ao longo do tempo.

Neste aspecto, os dados reais não parecem corresponder a essa narrativa.

Segundo relatório de tarifas e consumo da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), as tarifas médias de energia elétrica entre 2013 e 2019 subiram 105,2% vs. inflação de 47,7% no período. Abaixo apresentamos os principais componentes (antes de impostos):

  • Geração: componente aumentou em média 10,3% a.a. vs. inflação média de 5,7% a.a. (portanto 4,6% a.a. de aumento em termos reais)
  • Transmissão: componente aumentou em média 24,7% a.a., portanto 19,0% a.a. de aumento em termos reais
  • Encargos: componente aumentou em média 22,1% a.a., portanto 16,4% a.a. de aumento em termos reais, e
  • Distribuição: componente aumento em média 6,9% a.a., portanto 1,2% de aumento em termos reais

Um efeito que merece ser citado, foi a grande migração de consumidores para o mercado livre, uma vez que enquanto o componente geração (incluindo perdas) e encargos alcançam atuais R$361,3/MWh, os preços de energia no mercado livre a depender do prazo varia entre 130 a 195/MWh.

É preciso que a narrativa, que transforma as distribuidoras em vilões, deixe claro que, um dos componentes dos preços mais competitivos do mercado livre ou na geração distribuída advém do fato de não pagarem integralmente por custos sistêmicos, com reduções de encargos e tarifa do uso do sistema de distribuição e transmissão. Como os custos sistêmicos existem, alguém paga a conta. E este alguém é o consumidor cativo brasileiro: um universo de 74,9 milhões de consumidores (86,3% do total) que representam 65% do consumo de energia nacional.

Todos estão de acordo que a expansão do mercado livre é bem-vinda, porém é importante que o compartilhamento de custos sistêmicos e volume de subsídios sejam revistos. Para que os consumidores cativos cada vez em menor número, não arquem sozinhos com subsídios e custos sistêmicos insistentemente crescentes.

Um último ponto no contexto da pandemia é a geração de empregos, incentivando atividades intensivas, seja de capital ou humano. E nesse aspecto as distribuidoras não são as vilãs, ao contrário, o segmento é intensivo de capital e possui níveis de capex de manutenção próximos da depreciação. Também são intensivas de capital humano, basta comparar o número relativo de empregados e terceiros desta atividade com as demais atividades dos setores de geração, comercialização e transmissão de energia elétrica vs. o faturamento. Fotografia semelhante se aplica aos segmentos de saneamento básico de de gás canalizado.

Portanto, pensando em soluções estruturais de geração de emprego e renda e colocando-se o consumidor em primeiro lugar, nós achamos que a batalha de narrativas só produz perdedores. Muito mais importante que visões polarizadas e defesas acaloradas de cada segmento do setor de energia, melhor seria colocar o consumidor no centro do debate. Porque quando não há equilíbrio, particularmente, na alocação de custos sistêmicos e riscos entre cada segmento, o efeito é um processo concentrador de renda. E ao concentrar renda, as narrativas vão ganhando capital para se tornarem mais agressivas sem necessariamente se traduzirem no objetivo maior: que é melhor serviço com menor tarifa possível para o consumidor final.

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