Fonte: Jornal de Brasília / imagem: Waldemir Barreto/Agência Senado
Único senador a votar contra a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) das bondades em ano eleitoral, José Serra (PSDB-SP) critica duramente o Senado por ter atropelado a votação, em apenas dois dias, em vez de buscar uma saída que mantivesse a responsabilidade fiscal e sem medidas extremas e polêmicas, como a decretação do estado de emergência.
“Só agora o Senado descobriu que as famílias passam fome no Brasil?”, questiona o senador e ex-governador paulista, em entrevista.
Na noite de quinta-feira (30), o Senado Federal aprovou PEC que institui um estado de emergência e abre os cofres públicos para turbinar benefícios sociais. A proposta prevê R$ 41,25 bilhões, fora do teto de gastos, para elevar para R$ 600 o valor do Auxílio Brasil e zerar a fila de espera do programa, dobrar o Vale Gás e para pagar auxílios para caminhoneiros e taxistas.
A criação de alguns desses benefícios só foi possível juridicamente porque o texto da proposta também contém um dispositivo polêmico que estabelece o estado de emergência para viabilizar as benesses, o que vem sendo apontado como um “drible” na legislação eleitoral.
“A partir do momento em que a Constituição se torna instrumento para maiorias de ocasião solaparem o que bem entendem, tudo é possível. Sinto que tudo dependerá da conveniência, necessidade ou desespero dos envolvidos”, afirma.
Pergunta: Por que o senhor decidiu votar contra a PEC ?
José Serra: Pela forma como tudo se deu. De repente, aparece uma PEC com gastos da ordem de R$ 38 bilhões, despesas temporárias autorizadas no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Havia diversos itens no pacote: transferência de renda para os elegíveis ao Auxílio Brasil, subsídio à gratuidade para idosos no transporte público urbano e semi-urbano, compensação aos estados por crédito de ICMS ao setor de etanol, aumento do auxílio-gás, transferências para caminhoneiros. Depois, vieram as transferências para taxistas, tudo em dois dias. Não tínhamos o texto consolidado da PEC no momento em que a votação era aberta. Ao final, o Senado aprovou R$ 41 bilhões em despesas para 2022 mediante uma PEC que nem passou pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), votada em dois turnos numa tarde. Regras fiscais, questões distributivas, viabilidade do gasto, o caráter emergencial deste ou daquele item, impacto nas contas públicas, nada foi debatido.
P.: Qual fator pesou mais na decisão do senhor? O fato de a proposta ser eleitoreira, a inclusão do estado de emergência?
JS: O caráter eleitoreiro da medida é evidente. Só agora o Senado descobriu que famílias passam fome no Brasil? Que pessoas são intoxicadas ou queimadas pelo uso de material inadequado no preparo de alimentos devido à falta de gás de cozinha?
Foi uma decisão difícil, pois é óbvio que nenhum problema é maior do que a situação de insegurança alimentar de milhões de famílias. Há, contudo, meios e meios para obter recursos que atenuem o problema. Subitamente, declara-se na Constituição um estado de emergência para excetuar R$ 41 bilhões de todas as regras fiscais existentes, sem nenhuma discussão quanto ao mérito de cada item do pacote, fontes de custeio, impactos econômicos, etc? Em dois dias o Senado aprova uma PEC autorizando gastos temporários? Seria perfeitamente possível obtermos recursos pelo processo legislativo usual, via projeto de lei com recursos ordinários e extraordinários.
P.: Quais os riscos que o senhor avalia que há na previsão do estado de emergência para possibilitar o pagamento dos benefícios em um ano eleitoral?
JS: Regras fiscais são pensadas para reduzir os riscos de que recursos públicos sejam empregados de maneira injusta ou ineficiente, para reduzir os riscos de desequilíbrios fiscais crônicos. Ao permitir que, subitamente, dezenas de bilhões sejam gastos para proporcionar vantagem eleitoral a governos e parlamentares de ocasião, estamos reforçando estímulos a condutas irresponsáveis. Naturalmente, a competição política se torna ainda mais desigual. Uma Constituição deve estabelecer as regras fundamentais do jogo político e os pilares da arquitetura institucional de um país. Ontem, o Senado fez dela um instrumento para subverter todas as regras fiscais. O processo legislativo orçamentário e todas as regras que o balizam foram completamente desprezados.
P.: O senhor acredita que a previsão do estado de emergência pode abrir precedente, caminho, para outras iniciativas do governo Bolsonaro neste ano?
JS: Sempre é possível. O que a PEC aponta é que não há mais limites. No ano passado, aprovaram a PEC dos precatórios, muito problemática. Agora, R$ 41 bilhões em gastos temporários, sem considerações. Foram algumas as iniciativas com o intuito de reduzir na marra os preços de combustíveis, cogitando-se até rever a lei das estatais. A partir do momento em que a Constituição se torna instrumento para maiorias de ocasião solaparem o que bem entendem, tudo é possível. Sinto que tudo dependerá da conveniência, necessidade ou desespero dos envolvidos.
P.: Além do voto contrário, o senhor pretende tomar mais alguma medida contra essa PEC, como judicializar?
JS: A judicialização requer considerações de ordem processual e material. Não é uma medida trivial. Seguirei muito atento, até o final do meu mandato, a todas as tentativas de desconstruir o que construímos com tanto esforço. Quem rasga deveres da Constituição em um dia, no outro rasgará direitos, até que não tenhamos mais nenhum.