Fonte: Correio Braziliense / imagem: Pexels
CARLOS RAGAZZO*
Nas últimas décadas, o Brasil se tornou referência global de políticas públicas de combate à pobreza, principalmente em função do resultado do Programa Bolsa Família. Mas mesmo com o sucesso das transferências direta de renda focalizadas, a pobreza é um fenômeno complexo, que, cada vez mais, depende de diferentes estratégias para eliminá-la. Exemplo disso se vê a partir de dados do IBGE que indicam que, em 2022, quase 35 milhões de brasileiros usavam combustíveis poluentes, como lenha ou carvão, para cozinhar, problema reconhecido internacionalmente como pobreza energética — situação em que a pessoa não consome energia suficiente para atender necessidades básicas ou não tem acesso confiável à energia, recorrendo ao uso de biomassa.
Fenômenos como a pobreza energética mostram que é importante discutir formas de ampliar a diversidade do sistema de apoio social brasileiro, complementando a transferência direta de renda com instrumentos que atendam melhor o objetivo de eliminar pobreza em suas diferentes formas, como, por exemplo, os benefícios com destinação específica de recursos. Esses programas sociais são desenhados para que o acesso ao auxílio só possa ser usado para o consumo de bens ou serviços predeterminados pela regulação e não são substitutos de programas macro de transferência de renda, como é o caso do já mencionado Bolsa Família.
Os programas sociais com destinação específica têm sido vistos como um complemento positivo às transferências diretas de renda quando o objetivo da política não é induzir o consumo ou a recomposição do poder de compra, mas a mudança de comportamento do beneficiário sobre uma necessidade básica. No caso da pobreza energética, o objetivo é induzir a população a substituir a cocção diária com lenha ou carvão por combustíveis que sejam menos poluentes.
A experiência internacional já segue por esse caminho. Segundo uma árvore de decisão desenvolvida pela Comissão Europeia para desenho de programas sociais e avaliações de programas destinados ao combate da insegurança alimentar em países como República Democrática do Congo, México e Sri Lanka, os benefícios de destinação específica devem ser utilizados quando existem problemas informacionais que inibem a capacidade de decisão de consumo dos beneficiários.
Esse é o caso justamente do combate à pobreza energética, cujo benefício com destinação específica representa um estímulo à mudança de hábito da população que hoje cozinha com lenha. Isso porque a pobreza energética não é um fenômeno associado apenas à falta de poder de compra, mas sobretudo a graves assimetrias de informação sobre o consumo de lenha, o que piora em momentos de crise, quando famílias com renda mais baixa priorizam despesas com alimentação e habitação e recorrem à lenha para cozinhar por acharem que é uma opção sem custos.
No entanto, apesar de não ter custos financeiros imediatos, a lenha tem os chamados “custos invisíveis”: seus impactos na saúde, no meio-ambiente e no tempo disponível para estudo e trabalho em especial, prejudicando sobretudo mulheres e crianças em situação de pobreza. A aparente gratuidade frequentemente leva à percepção de que a lenha é uma opção mais econômica e que o dinheiro de uma transferência direta de renda, como o Bolsa Família ou mesmo o atual Auxílio Gás, pode ser usado com outras finalidades.
Estudo publicado pelo grupo indoor pollution, com professores da Puc-Rio e da UERJ, indicou que, na região interior do Piauí, a facilidade de acesso e a aparente ausência de custos emergem como fatores determinantes para a prevalência do uso da lenha como fonte de energia para determinadas camadas de renda. Mesmo com aproximadamente 80% das residências pesquisadas equipadas com fogões a gás, com uma capilaridade absolutamente abrangente em todas as regiões do país, o fogão a lenha é empregado nas refeições diárias devido à sua menor despesa operacional.
Levando em consideração tais características, não surpreende que a vigência tanto do Bolsa Família como de um Auxílio Gás nos moldes de transferência direta de renda não tem sido suficiente para reduzir de maneira significativa e sistemática a pobreza energética no país, ainda que tenha sucesso na redução da pobreza de forma mais ampla. O problema a ser resolvido, na verdade, tem características que demandam uma política de destinação específica, para eliminar os respectivos desdobramentos que impactam negativamente a vida das pessoas e o desenvolvimento do país.
Assim, há indícios de que a redução da pobreza energética por meio da substituição da lenha para cocção não acontecerá se o sistema de apoio social brasileiro permanecer centrado apenas em transferências diretas de renda, que foram construídas para atingir outro perfil de problema. É preciso ampliar o ecossistema de políticas públicas de combate à pobreza para que ele seja capaz de atingir outros perfis a partir de mecanismos complementares. No caso da pobreza energética, há fortes indícios de que tais mecanismos deveriam ser centrados em benefícios de destinação específica — ou seja, no desenvolvimento de um programa social cujo recebimento do benefício seja atrelado diretamente à substituição da lenha por um combustível menos poluente.
*Professor da FGV Direito Rio