Fonte: G1 / imagem: Copa Energia

Contextos históricos, culturais e econômicos de uma determinada época são importantes nas formulações de políticas públicas, seja no passado, atualmente ou até mesmo no futuro. Século XX, o ano de 1991: a lei 8.176 foi promulgada no Brasil. No texto, a comercialização do Gás Liquefeito de Petróleo (GLP) para alguns setores produtivos foi tipificada como crime contra ordem econômica.

Nos bastidores da decisão, a Guerra do Golfo (entenda mais abaixo). A lei de 1991 foi aprovada como uma medida para garantir a utilização dos produtos derivados do petróleo de forma definida. GLP, o famoso gás de cozinha, seria destinado de forma mais ampla às casas dos brasileiros. Gasolina, apenas para os carros leves. Já o diesel para indústrias, geradores e veículos pesados.

Século XXI, a data: 6 de junho de 2024. A discussão quanto ao uso do GLP é outra. Uma espécie de “quebra-cabeça” está quase pronto e a alguns passos de ser entregue à sociedade brasileira.

Unindo ciência, governos federal e estadual, população e setor produtivo, o debate sobre a utilização do famoso gás de cozinha na produção de energia elétrica e a reformulação da legislação brasileira pode sair do papel ainda em 2025, de acordo com representantes da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Brasil (ANP).

A criminalização do uso do GLP: 1990 e 2024

A Guerra do Golfo ocorreu entre os anos de 1990 e 1991. Os Estados Unidos da América (EUA) se uniram em uma coalizão multinacional com países asiáticos, que expulsou do Kuwait as forças do Iraque que haviam invadido o país. À época, Saddam Hussein, ex-presidente do Iraque, invadiu o Kuwait na tentativa de controlar os campos de petróleo.

A tomada do território de Kuwait foi rápida. Os iraquianos assumiram o poder do país e, consequentemente, das inúmeras minas de petróleo. Em resposta, os EUA realizaram uma coalizão para expulsar as tropas do Iraque.

Neste momento, os países da América Latina, como o Brasil, que eram totalmente dependentes do petróleo extraídos dos países do Oriente Médio envolvidos na guerra, tomaram medidas legais para garantia do consumo e comercialização das produção à base de petróleo.

No território brasileiro, uma das leis aprovadas foi a 8.176, que tipificou o uso desautorizado de GLP em motores, saunas, caldeiras e aquecimento de piscinas, ou para fins automotivos, como crime contra a ordem econômica. Essa legislação, embasada a partir dos contextos da última década do século passado, segue vigente.

Naquele momento, o governo do Brasil temia que o conflito geraria uma escassez de derivados de petróleo no mundo, inflacionando os custos. Foi a partir deste marco, que, o senso comum do GLP como gás de cozinha virou unanimidade. O Coordenador-Geral de Acompanhamento de Mercado do Ministério de Minas e Energia (MME), Deivson Timbó, relembra que o país usou esta postura para garantir que o abastecimento não fosse fragilizado no Brasil.

“Foi a partir deste momento que os papéis dos ativos do petróleo ficaram claros no Brasil. O GLP deveria ser utilizado como gás de cozinha. A gasolina para os veículos leves. Já o diesel seria destinado para os veículos pesados. O contexto internacional fez com que a legislação vedasse e fosse mais dura. O Brasil foi exposto a uma vulnerabilidade em relação ao mercado internacional, que era tão dependente”.

Diante deste cenário, mais de 30 anos se passaram. Apenas em 2016, uma resolução da ANP flexibilizou o uso do combustível em empilhadeiras e equipamentos industriais de limpeza. Porém, a diversificação do uso do produto não fugiu do debate público. Já que, o GLP é uma possibilidade para um caminho viável para transição energética e está inserido em uma realidade diferente em 2024.

O presidente Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás), Sergio Bandeira de Mello, é categórico ao dizer sobre o anacronismo estabelecido pela legislação vigente, que restringe a ampliação do uso do GLP.

“Por um lado é genial, por outro é o puro ‘suco do Brasil’. Nós estamos em 2024 discutindo isso, anacrônico é um termo gentil. É uma discussão esquizofrênica. A discussão data há muito tempo, quando se tinha uma escassez do GLP. Hoje temos abundância de GLP no mundo. Hoje é um grande momento para uma discussão, para reversão”, salientou Sergio.

 

Pesquisas asseguram utilização do GLP na produção de energia elétrica

A ciência, mais precisamente a produzida em uma instituição pública, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), foi parceira na comprovação de que o GLP pode ser sim um aliado na produção de energia elétrica e da transição energética no Brasil.

Nesta quinta, o professor e diretor da Agência de Internacionalização e de Inovação (Aginova) da UFMS, Saulo Gomes Moreira, foi pioneiro ao apresentar resultados otimistas de pesquisas com o uso do combustível em práticas distintas das já utilizadas.

Desde 2019, a UFMS e a Copa Energia – maior distribuidora de GLP do país – desenvolvem estudos sobre novos usos do combustível. Durante a apresentação do professor Saulo, os resultados de duas pesquisas foram divulgados.

1º projeto: a utilização do GLP na geração de energia elétrica, para abastecer o Hospital Universitário (HU), em Campo Grande, durante a pandemia de Covid-19. Com o aumento da demanda e o maior número de internações, o gerador movido a GLP foi essencial para otimizar espaços e garantir processos mais seguros aos pacientes e colaboradores na instituição de saúde, como pontuou Saulo.

“Distribuição de energia elétrica. Temos o primeiro gerador de energia elétrica movido a GLP. O gerador está abastecendo uma parte da rede da universidade. Estamos explorando o GLP para além do gás de cozinha”, explicou o professor.

2º projeto: Outro projeto desenvolvido em parceria entre a Copa Energia e a UFMS estudou o uso de energia elétrica produzida a partir do GLP para manter a oxigenação de tanques de piscicultura. Na estação de piscicultura da UFMS, em Terenos, foi pesquisado o uso da tecnologia para a produção da pacu. Em Campo Grande, os cientistas analisaram a aplicação para a criação de tilápia.

“Utilizamos a energia gerada pelo GLP na piscicultura. Para produção de peixes, a energia é crucial para manter a oxigenação nos tanques, assim, para que os peixes possam manter seu desenvolvimento adequado. Muitos locais têm uma deficiência do sistema energético. Com isso, os aeradores, responsáveis por fazer o oxigênio circular nos tanques, não são utilizados ou param. A rede de distribuição de energia falha. Já o GLP fica presente ali, em um pacote energético que garante a energia”.

O professor da UFMS foi categórico ao assegurar, a partir de estudos multidisciplinares, a segurança na utilização do GLP em práticas para além da convencional. Em suma, os resultados das pesquisas apontaram um caminho a ser explorado pelo mercado de combustível, que se apresentou menos agressivo ao meio ambiente e competitivo, se comparado às outras fontes de energias fósseis já utilizadas.

GLP é um caminho para a transição energética

Durante a apresentação, o representante da UFMS destacou alguns tópicos importantes quanto aos resultados das pesquisas. Para os estudos, o GLP se apresenta como uma fonte de energia segura, com menor pegada de carbono e uma opção competitiva em nível de mercado.

“A vantagem do GLP é que é uma fonte firme, traz segurança energética. A maioria dos geradores são movidos a diesel. O GLP pode ser uma justificativa ao diesel, nisso o GLP apresenta mais vantagens na emissão de poluentes, se comparado ao diesel. O custo da energia gerada pelo GLP fica, por vezes, menor em comparação aos outros”.

O professor Saulo explica que na produção e no consumo do GLP, menos poluentes são emitidos ao meio ambiente, se comparado a outros ativos do petróleo, como o diesel. O GLP é conhecido como um combustível de transição: de uma energia fóssil mais agressiva para uma renovável.

Em tempos em que as mudanças climáticas são cada vez mais frequentes, pensar em alternativas com menores pegadas de CO2 é de extrema importância, como frisa o pesquisador da UFMS. Nas pesquisas desenvolvidas em Mato Grosso do Sul, os cientistas conseguiram identificar uma diferença nos valores de emissão de carbono. Enquanto o GLP emitia 8,1%, o diesel, 10,6%, segundo estudo apresentado.

“O GLP pode ter uma pegada menor no meio ambiente e uma alternativa. Identificamos as viabilidades técnicas e ambientais. O GLP é uma alternativa importante para sociedade, comércio, indústria e pequenos produtores. Temos a possibilidade do GLP como mais uma opção. Não devemos cercear a sociedade em optar pelo GLP”, assegura Saulo.

A chamada transição energética é um conceito fundamental no contexto atual das preocupações com as mudanças climáticas. Na teoria e na prática, este período pressupõe a mudança do uso predominante de combustíveis fósseis, como carvão, petróleo e gás natural, para fontes de energia mais limpas e renováveis.

O vice-presidente de Operações e Estratégia Copa Energia, Pedro Zahran Turqueto, entende a necessidade de oferecer ao mercado um ativo energético menos poluente e que seja contribuinte neste momento em que todo o mundo enfrenta as catástrofes do aquecimento global.

“Não vamos sair da noite para o dia no uso do combustível fóssil para uma fonte totalmente renovável. Para essa transição, o GLP é extremamente necessário. Hoje, quando a gente vê esses incidentes terríveis no Brasil e no mundo, a gente precisa começar essa jornada. Acho que a autorização do GLP para produzir energia, substituindo combustíveis mais poluentes, é extremamente necessário pro Brasil continuar sendo competitivo e ter uma matriz energética mais limpa”.

Os novos passos do GLP no Brasil: legislação anacrônica X reformulações palpáveis

Atualmente, a discussão quanto ao GLP é outra: rever a legislação e ampliar a diversificação do uso do combustível. O contexto de 2024 é bem diferente do vivido pelo mundo em 1991, com a Guerra do Golfo. Para empresários, sindicatos, políticos e governos, a legislação se expõe de forma frágil para a atualidade.

Mesmo que o medo fosse a falta de combustível para o uso final – as cozinhas dos brasileiros – o país se aproxima da independência na produção do insumo. A informação foi dada pelo Superintendente de Distribuição e Logística da ANP, Diogo Valério: “o Brasil deve ser autossuficiente na produção de GLP até 2031”.

“Embora a restrição de outros usos seja estabelecida em lei, tem um entendimento da Procuradoria Federal junto à ANP que uma resolução da ANP, uma mudança regulatória da ANP, seria suficiente para liberação dos outros usos caso seja esse o caminho técnico escolhido pela agência”, apresentou o responsável pela Agência.

Na visão da ANP, o GLP é visto como uma alternativa de energia. Estudos técnicos são realizados para dar conta de compreender as possibilidades de eficiência de mercado e garantia de abastecimento, visto o novo horizonte que se aproxima para comercialização do gás.

Diogo antecipou que uma Análise de Impacto Regulatório (AIR) é realizada por uma grande comissão da ANP para discutir todos os parâmetros regulatórios ligados ao GLP. No debate, o representante da audiência disse que até 7 de novembro a ANP deve entregar este documento para consulta pública. Após ampla discussão, a possibilidade de mudança na legislação já tem um vislumbre temporal: segundo semestre de 2025.

“Nesse momento a ANP está desenvolvendo AIR, o nosso prazo para entrega desse AIR é, que a nossa equipe está focada e está tentando até antecipar isso, hoje é 7 de novembro. Então acho que falta pouco pra gente terminar essa discussão. O objetivo desse AIR está muito alinhado com o que foi falado aqui é aumentar a eficiência do mercado e garantir o abastecimento. Fonte alternativa de energia, além de possibilitar um aumento de eficiência, ela ajuda a garantir o abastecimento, que é o grande objetivo da ANP, porquê da escolha. Na falta de um energético, a gente teria possibilidade de utilizar um outro energético para fornecer aquela energia”, detalhou Diogo.

“A grande preocupação da ANP nesse estudo que vai ser concluído em novembro é a garantia do suprimento. Nesse sentido, além de analisar a dualidade permite ou não permite, a gente tem que analisar como permite. Será que se a ANP optar por permitir, seria interessante se fosse gradual, faseado, ou não?”, destaca o superintendente da ANP.

O deputado federal Beto Pereira (PSDB-MS) faz parte da comissão de Minas e Energia da Câmara Federal. O parlamentar foi responsável por promover a discussão, que ocorreu presencialmente em Campo Grande.

“Precisamos o quanto antes criar possibilidades que viabilizem mais desenvolvimento e interiorize o desenvolvimento. Quando falamos em áreas remotas, o Mato Grosso do Sul sofre, já que as redes de fornecimento de energia elétrica não são abundantes. Isso traz transtornos. Em vários momentos inviabiliza negócios. Para o desenvolvimento do país, para áreas menos adensadas, como o Mato Grosso do Sul, precisamos avançar com isso [legislação] com celeridade”.

Pedro Zahran Turqueto acredita em um futuro promissor na discussão para diversificação no uso. “Hoje a gente tem uma regulação anacrônica, que não permite o uso do GLP em motores, para geração de energia elétrica. Esse debate a gente vem há 30 anos do setor tentando mostrar as qualidades e os benefícios que a sociedade como um todo tem em poder usar o GLP para geração de energia em lugares remotos, motores, de trator. Uma série de oportunidades que o Brasil vem perdendo com uma legislação impeditiva”.

“É algo muito importante para o Brasil como um todo e especialmente para MS que tem uma série de áreas que têm investimento, no agronegócio, por exemplo, que tem que, ou usar o diesel para geração de energia elétrica, muitas vezes mais caro, mais ineficiente, mais poluente. Neste ponto se dá a importância desse debate”, comenta.

Segurança ao agronegócio pode vir do GLP

A pesquisa apresentada pelo representante da UFMS relacionada à produção de tilápia aponta direcionamentos que podem dar mais segurança ao agronegócio brasileiro. Com propriedades rurais distantes de grandes centros de produção de energia, os proprietários carecem de uma rede elétrica eficaz para manterem de forma sustentável os negócios.

No caso das tilápias, o GLP foi aplicado para geração de energia elétrica que abastecia aeradores, para promover uma maior quantidade de oxigênio nos tanques dos peixes. “Quanto mais oxigênio, podemos ter mais peixes em um menor espaço. Os peixes vão se desenvolver melhor. O GLP aparece como uma alternativa segura neste pacote energético”, detalha Saulo.

O sistema de aeração instalado nos tanques de peixes foram testados como uma fonte firme de energia ininterrupta, o que não ocorre comumente com a energia elétrica oferecida atualmente. As intempéries climáticas são empecilhos para o atual abastecimento, Saulo comenta que o GLP também preenche este gargalo: “na pesquisa observamos que o GLP traz segurança às produções, ao agronegócio. Dando oportunidades e outras possibilidades”.

Na pesquisa da UFMS, os cientistas chegaram às seguintes conclusões ligadas ao uso do GLP:

  • Maior competitividade para o pequeno produtor;
  • Geração de renda para a agricultura familiar;
  • Tem baixa emissão de poluentes e baixo impacto ambiental;
  • Grande potencial para novo mercado gerando emprego e renda;
  • Segurança energética com abastecimento em regiões remotas, gerando uma independência que evita interrupções momentâneas no fornecimento;
  • Custo menor em relação à tarifa de energia elétrica nos horários de ponta;
  • É fácil de armazenar e transportar;
  • Minimização dos riscos de mortalidade dos peixes na produção.

O professor Ruy Corrêa, responsável pela pesquisa diretamente ligada à produção dos peixes, frisa sobre a necessidade de oferecer aos produtores rurais uma fonte energética segura, que garanta a viabilização de um sistema produtivo mais robusto.

“Se ficar um tempo sem energia, os produtores perdem mesmo. Comentamos com os produtores sobre os projetos desenvolvidos na UFMS. Os olhos de todos brilharam. Eles viram a possibilidade do uso de um outro energético que poderia viabilizar o uso de sistemas com maiores produtividades. O GLP traz a possibilidade para o setor do agronegócio. Tudo é importante, quando se pensa em sistemas com mais produtividades. Precisamos pensar mais no nosso estado, que é pouco adensado e tem grande distância”.

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